quarta-feira, 28 de abril de 2010

O homem da gravata florida

Rubem Alves diz em um de seus textos(1) que a música tem uma certa magia. Às vezes, apesar de não desejarmos, nossa alma deixa-se levar, sendo possuída, seduzida por sua beleza.  É claro que o conceito de beleza é subjetivo, portanto, na música isso não seria diferente. Ao ouvirmos uma música somos invadidos por sentimentos e sensações diversas, boas ou ruins. Angústia prenunciada por um nó na garganta, ojeriza, ternura, tristeza, excitação, alívio, acolhimento, são algumas das sensações que experiencio quase todos os dias.

Muitas vezes, não se trata da música toda, mas somente uma de parte dela; um andamento, um compasso, ou um refrão. Às vezes até um falsete.

A música é capaz de tocar o corpo, a memória, ou a alma. Arrepio na pele, vontade de chorar, pular ou abraçar a pessoa mais próxima. Em nenhum dos casos sabemos explicar seu efeito sobre nós.

Dito isso, explico o motivo da introdução. Algo estranho aconteceu com meu corpo quando fui apresentada à musica de Jorge Ben Jor.

O cenário e a companhia podem ter contribuído, admito. A experiência aconteceu há uns 5 anos se não me engano. A cidade de litoral, as férias e a bela vista pareciam combinar perfeitamente com a sensual “Menina mulher da pele preta”. Mas aquela música teve um outro efeito sobre mim: me deixou intrigada. Quis saber mais.

O primeiro disco de 1963 chama-se Samba esquema novo e é um tanto auto-explicativo. Em meio ao estilo contido, equilibrado e cool da bossa nova e o ‘rock rebelde-fake’ da Jovem Guarda, surge Jorge. Violão enfatizando a percussão, voz meio anasalada em tom malandro. Nada aristocrático ou contido como a bossa nova. Jorge Ben Jor foi chamado de primitivo.

Não é de se admirar: “Olha o balaio dela como é grande. Essa nega quando chega não deixa espaço pra ninguém. Também, com uma nega dessa, quem vai querer a nega de alguém?” Letra parecida podemos ouvir nas vozes das mais novas bandas de funk (sobre as 'popozudas'), mas há 50 anos era certamente um esquema novo.

Esquema de sambalanço. Instrumentos delicados de percussão, violão bem marcado, alguns sopros. A melodia se destaca da letra e muitas vezes a sobrepõe. A vontade é de sambar.

A novidade não está só nas letras simples, mas na batida, nos arranjos, na modulação da voz, brincadeiras com a métrica (“na-mo-mo-ra-ra-do da viúva”).

“Você é linda, é quase colorida” soa quase infantil se só lermos a letra. Mas basta ouvir a música e toda a preocupação com a sofisticação lírica cai ‘num balaio de flores’ e fica esquecida. A vontade é de saber para quem ele teria escrito essa música. Vontade de ser quase colorida também.

Ben Jor fala de sentimentos nada rebuscados: vontade de chorar, andar descalço no parque, ir ao circo, sorrir, girar na chuva, sambar, amar, olhar a lua e o sol.

Fala sobre cores e imagens: janelas de cristais, forro de veludo rosa, vestidos corais, roupas brancas, gravatas floridas.

Fala sobre preocupações corriqueiras: “Preciso de uma casa para minha velhice, porém preciso de dinheiro para fazer investimentos” sem se preocupar com nenhuma rima. Fala da espera ao lado do telefone (“fui atender e não era o meu amor”) e de alguém que não pôde esperar “Cinco minutos” apenas.

Fala sobre futebol: Sobre Zico (“O camisa 10 da Gávea”), o jogador João Batista de Sales (“Fio Maravilha”), o Flamengo e sobre os mandamentos para um bom zagueiro.


Fala sobre mulheres: de nomes simples (Rita, Gabriela, Aparecida,Teresa, Rosa, Maria Luisa, Sílvia, etc) ou inusitados: Dorothy, Domênica, Dandara, Jesualda, Zula, Maria Domingas, Magnólia.
Além de galanteá-las uma a uma, também fala sobre a “Menina mulher da pele preta” ou a “Mulher brasileira” e inaugura a cantada "Você não é Ave Maria, mas é cheia de graça”.

Fala sobre História: Taj Majal, Galileu, Zumbi, Xica da Silva, sobre a tábua de Esmeralda, os alquimistas e Hermes Trimegisto.

Fala em inglês: “I dance very well because I am Jorge Well”, “Prepare one more happy way for my love” sem a mínima preocupação com pronúncia. O que não causa nenhum dano à música.



Vale lembrar aqui novamente Rubem Alves: “As palavras são só um suporte. Elas existem para produzir o espaço vazio e silencioso de que a musica necessita para existir. Sabem disso os amantes: não são as palavras que contam. É a musica (das palavras)”


Termino com duas letras bem simples e que resumem um pouco sua obra. Jorge Bem Jor não tem a beleza e charme de Tom Jobim, mas sua música é certamente sua gravata florida.

Deixo links para os que quiserem tentar a experiência que tive há 5 anos. Lembrem-se que na alquimia, para se transformar chumbo em ouro é preciso estar com o corpo e mente abertos, se não, não vale nem a pena tentar. Ouçam com o espírito livre e boa dança.

http://letras.terra.com.br/jorge-ben-jor/86455/
http://letras.terra.com.br/jorge-ben-jor/86101

http://www.radio.uol.com.br/#/artista/jorge-ben/1291


1 Alves, Rubens. “Sobre a alma e a música” em Cenas da Vida, 1997. Campinas, SP: Papirus,


EU VOU TORCER
Jorge Bem Jor

Eu vou torcer pela paz
Pela alegria, pelo amor
Pelas moças bonitas
Eu vou torcer, eu vou
Pelo inverno, pelo sorriso
Pela primavera, pela namorada
Pelo verão, pelo céu azul
Pelo outono, pela dignidade
Pelo verde lindo desse mar
Pelas moças bonitas eu vou torcer, eu vou
Eu vou torcer pela paz
Pela alegria, pelo amor
Pelas moças bonitas
Eu vou torcer, eu vou
Pelas coisas úteis que se pode comprar
Com dez cruzeiros
Pelo bem estar, pela compreensão
Pela agricultura celeste, pelo coração
Pelo jardim da cidade, pela sugestão
Pelo Santo Tomás de Aquino
Pelo meu irmão
Pelo Gato Barbieri,
Pelo mengão
Pelo meu amigo que sofre do coração
Pelas moças bonitas
Eu vou torcer, eu vou
Eu vou torcer pela paz
Pela alegria, pelo amor
Pelas moças bonitas
Eu vou torcer, eu vou
Pelas dondocas bonitas
Eu vou torcer, eu vou.


O HOMEM DA GRAVATA FLORIDA
Jorge Ben Jor

Lá vem o homem da gravata florida
Meu deus do céu... que gravata mais linda
Que gravata sensacional
Olha os detalhes da gravata...
Que combinação de côres
Que perfeição tropical
Olha que rosa lindo
Azul turquesa se desfolhando
Sob os singelos cravos
E as margaridas, margaridas
De amores com jasmim
Isso não é só uma gravata
Essa gravata é o relatório
De harmonia de coisas belas
É um jardim suspenso
Dependurado no pescoço
De um homem simpático e feliz
Feliz, feliz porque... com aquela gravata
Qualquer homem feio, qualquer homem feio
Vira príncipe
Simpático, simpático, simpático
Porque... com aquela gravata
Êle é esperado e bem chegado
É adorado em qualquer lugar
Por onde ele passa nascem flores e amores
Com uma gravata florida singela
Como essa, linda de viver
Até eu, até eu, até eu, até eu, até eu,...

4 comentários:

  1. Texto simples, rico, sábio, literário, musical...
    Parabéns! O seu trabalho está cada dia mais bonito.
    Bjs

    ResponderExcluir
  2. Adorei, Carol! Jorge Ben certamente vem acompanhado de muitas lembranças e sentimentos.
    Bjs,
    Manu

    ResponderExcluir
  3. Colocar uma gravata colorida até vai, mas sambar... Não é para mim mesmo. =)

    Muito gostoso de ler o seu texto, pra variar.
    A presença das palavras do Alves, cá entre nós, deu aquela elegância básica. Bravo!

    E que as esperas pelos seus textos sejam menores! Bimestral não!! hehehe...

    Besos, Luiz.

    ResponderExcluir
  4. Oi Carol,
    Seu texto é gostoso de ler e muito sábio.
    Parabéns mais uma vez!
    Beijoca,
    Mônica

    ResponderExcluir

Seguidores

 

Contador Grátis