quarta-feira, 27 de outubro de 2010

BICHINHO


Fui mordida por um bichinho do desejo. Desejo de escrever. Esse bichinho não sabe que existe dia nem noite, primavera ou outono, madrugada ou meio-dia. Sou levada até a folha branca por uma força que não sei de onde vem. Parece que alguma coisa precisa ser derramada. Não de uma vez só. Mas com cuidado e aos poucos. Escrever, ler, apagar, ler, adicionar, aparar, cortar. A força vence o cansaço do dia, vence a fome, a melancolia, a preguiça, a lentidão e se impõe. Vejo-me obrigada a sentar e escrever. Se não o fizer, tenho a impressão de estar em dívida, de acumular algo.


Outro dia a máquina de lavar ficou vazando aqui em casa e coloquei um balde para dar conta do excedente. Não funcionou. A água jorrava até não poder mais. O barulho aumentava e o balde enchia, continuando a derramar água. Duas opções: tentar um balde maior ou fechar o buraco por onde a água saía. Tive a mesma sensação outro dia. Só que a única forma de fechar meu ‘pensador’ era escrevendo. O balde maior seriam as formas de protelar, como anotar idéias num bloco para desenvolvê-las depois. Ou seja, o balde maior não resolve o problema do excedente, apenas faz função de espera. Uma hora a água terá que ser derramada, o balde só faz acumulá-la.

Engraçada a dinâmica da anotação. Pego-me anotando uma idéia no trânsito, ou no meio da rua. Códigos ou iniciais que só eu entenderei depois. A idéia não pode sair voando por aí. Tento prendê-la no bloquinho. Para que eu pelo menos tenha a ilusão de que não a perdi. De que a recuperarei intacta mais tarde.

'minha música quer SÓ ser música'

Estava pensando outro dia sobre o ato de escrever e produzir (compor, cantar ou tocar) música.

Não sei responder se a tal da  inspiração existe de fato. O que sei, é que às vezes sou tomada por
uma coisa que obriga a sentar e escrever, que eu chamei de bichinho.  Imagino que deva acontecer o mesmo com quem canta ou compõe. É um desejo que nos atravessa e simplesmente se impõe.

Como a música  de Adriana Calcanhoto que não quer ser moda, nem quer estar certa. Ela simplesmente quer Só Ser música.

Escrever: formal, informal ou academicamente. Em moleskines, cadernos ou  papel de pão.
Vale tudo.
Talvez Lacan possa ajudar a explicar o bichinho, com o conceito de pulsão:

"A pulsão não tem dia nem noite, nem primavera nem outono, nem subida nem descida. Ela está ali sempre, não podemos fugir dela. A pulsão é uma força constante" (LACAN, O Seminário, livro XI).

Separei alguns trechos abaixo sobre a música e a palavra que se impõem ao sujeito, porque ‘habitam o coração do pensamento’ (Chico Buarque)
Quem gostar de escrever, ler, ouvir, tocar, cantar ou compor,se manifeste!

Minha Música
Adriana Calcanhotto

Minha música não quer
Ser útil
Não quer ser moda
Não quer estar certa...
Minha música não quer
ser bela
Não quer ser má
Minha música não quer
Nascer pronta...
Minha música não quer
Redimir mágoas
Nem dividir águas
Minha música não quer
Me pertencer
Não quer ser sucesso
Não quer ser reflexo
Não quer revelar nada...


Minha música quer estar
Além do gosto
Não quer ter rosto
Não quer ser cultura...
Minha música quer ser
De categoria nenhuma
Minha música quer
Só ser música
Minha música


Não quer pouco...



Nu com a minha música
Caetano Veloso


Deixo fluir tranqüilo
Naquilo tudo que não tem fim
Eu que existindo tudo comigo, depende só de mim
Vaca, manacá, nuvem, saudade
cana, café, capim
Coragem grande
é poder dizer sim




brica do Poema
Adriana Calcanhotto

Sonho o poema de arquitetura ideal
Cuja própria nata de cimento
Encaixa palavra por palavra, tornei-me perito em extrair
Faíscas das britas e leite das pedras.
Acordo;


E o poema todo se esfarrapa, fiapo por fiapo.
Acordo;
O prédio, pedra e cal, esvoaça
Como um leve papel solto à mercê do vento e evola-se



Uma Palavra
Chico Buarque


Palavra dócil
Palavra d'agua pra qualquer moldura
Que se acomoda em balde, em verso, em mágoa
Qualquer feição de se manter palavra
Palavra minha
Matéria, minha criatura, palavra
Que me conduz
Mudo
E que me escreve desatento, palavra



Palavra boa
Não de fazer literatura, palavra
Mas de habitar
Fundo
O coração do pensamento, palavra



Minha Missão

João Nogueira e Paulo César Pinheiro


Do poder da criação
Sou continuação
E quero agradecer
Foi ouvida minha súplica
Mensageiro sou da música


O meu canto é uma missão
Tem força de oração
E eu cumpro o meu dever
Aos que vivem a chorar
Eu vivo pra cantar
E canto pra viver

Seguidores

 

Contador Grátis